terça-feira, 17 de novembro de 2009

"A VIAGEM", in "Contos Exemplares" - outra escolha para o Ensino Secundário

Num espantoso conto de Sophia de Mello Breyner Andresen, intitulado "A Viagem", um casal perde-se e procura o caminho certo, percebendo que não pode voltar de novo às encruzilhadas onde escolhera um dos caminhos. É uma viagem "parábola" da nossa vida em que procuramos, tantas vezes, agarrar o que já passou.
No final do conto, quando percebe que tudo vai perder, a mulher já sozinha diz: "Do outro lado do abismo está com certeza alguém. / E começou a chamar."

Também a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen remete o homem para um espaço utópico (ideal e impossível) comparável ao lugar procurado pelo casal que protagoniza o conto alegórico 'A Viagem '.
Eis o lugar ideal para o casal que protagoniza o conto:
"Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.”


in http://moodle.ag-sg.net

"O Visconde Cortado ao Meio", de Italo Calvino - uma das escolhas para o Ensino Secundário

Acabo de ler há dias O Visconde Cortado ao Meio com a sensação de enorme conforto que nos fica de belas refeições e dos mais belos momentos físicos das nossas vidas. O ritmo da escrita de Calvino é quase musical, uma sinfonia que passa pelos nossos olhos quase sem esforço, já que, como uma vez disse um grande livreiro português, «ler é uma chatice, mas é a única forma de chegar ao conteúdo dos livros, à vida dos livros». Ora, ler Calvino é a antítese desta sentença.
O visconde Medardo de Terralba (protagonista da obra) havia ficado mutilado na guerra com os Turcos. Cortado em dois por uma malograda bala de canhão, Medardo volta à sua terra natal, Terralba, apenas com uma dos lados do corpo, «decepado» na vertical. Aparentemente, voltara apenas a sua «metade má», passando o visconde a atormentar os seus próprios súbditos, desde enforcamentos em massa a pequenas patifarias com um toque de crueldade infantil – como abrir buracos nas pontes para os camponeses lá caírem.
Pelo meio várias personagens se juntam à narrativa: Pamela, a sua amada; o doutor Trelawney, que, apesar de ter viajado com o capitão Cook, «pouco ou nada tinha visto durante as suas viagens, porque passava o tempo todo no porão, a jogar ao sete-e-meio com os marinheiros»; o artesão Pedro Prego, que construía, para seu desprazer, máquinas de execução e tortura para o visconde, embora a estética das construções o maravilhasse; e o narrador, uma criança que é sobrinho do próprio visconde.Aliás, a «inocência» da escrita é de certa forma parente do facto de o narrador ser, habitualmente, uma criança: seja sobrinho do protagonista nesta obra ou, por exemplo, o irmão do barão protagonista de O Barão Trepador.
Para finalizar, resta dizer que a chave do livro está no surgimento de uma nova personalidade misteriosa do visconde de Terralba que, aparentemente, faz o bem de forma tão veemente como faz o mal. Esta duplicidade divide os habitantes a partir do momento em que o «benfeitor», ao denunciar os pequenos crimes inocentes, se torna tão insuportável quanto o terrível tirano que é o visconde mutilado regressado da guerra. Ou seja, e como diz o narrador, os habitantes sentiam-se «perdidos entre a malvadez e a virtude igualmente desumanas». É precisamente nesta duplicidade, nesta ambivalência, que reside a chave do livro, que reside a essência das duas naturezas do visconde. Das duas naturezas, enfim, do próprio homem. Poucos escritores transformariam esta questão num livro tão memorável. Italo Calvino é um deles. O desfecho deixa ao leitor essa oportunidade de descoberta.
"O Visconde cortado ao meio", de Italo Calvino, é o primeiro livro da trilogia "Os Nossos Antepassados". É um livro de linguagem e estrutura feérica, onde as formas mais presentes nos tradicionais contos de fadas conseguem ser desenvolvidas nos seus aspectos mais terríveis, a caminho do sadismo, num contexto referencial adulto, norteado por um sentido de humor que balança entre o infantil e o mais filosoficamente profundo cinismo. Hiperbólico e metafórico, é um romance poético sem se deixar ofuscar pela sua linguagem poética. A invenção do absurdo nunca se sobrepõe à narrativa que avança sempre com o mais nobre (e hoje, cada vez mais difícil) intuito de qualquer obra de ficção, que é contar uma história. Há, com certeza, um fundo moral e político que, independentemente de qualquer pretensa opção puramente hedonista do autor, conforma uma alegoria sobre a natureza humana e a sua necessária complexidade. Ao contrário de alguns autores, não considero que Calvino ataque a bondade pura; apenas expõe ao ridículo a sua estéril e impotente obra e o desejo de recorrente reformismo, em contraste, por exemplo, com a atitude pedagogicamente correcta da ama Sebastiana que admoesta a parte boa do visconde sem querer saber de qualquer desculpa baseada na origem maligna dos comportamentos apenas imputáveis à parte má, porque ambos permanecem, ao seu olhar maternal, como um só.

"Cão como nós", de Manuel Alegre - obra escolhida para o Ensino Básico

São cento e algumas páginas que nos mostram, à sua maneira, a forma de um homem ter saudades do seu cão. A este, um epagneul-breton, foi-lhe dado o nome de Kurika, nome de leão, e não era então um cão como os outros, era-o antes como nós.

Era também um membro da família, um irmão, talvez, para os filhos do narrador, este era talvez o único que o via como cão e não como um deles, apesar de o saber diferente tentava sempre mostrar-se dono do seu cão como tal o era. Página sim, página não temos os relatos alternados de um dono de um cão que mesmo depois de este morrer o continua a sentir como se se tivesse tornado apenas invisível mas continuasse a existir. Ouve-o. Sente-o. Quase o vê. Talvez apenas imagine, mas seja como for o que interessa é que, imaginado ou não, Kurika estava e faria, onde estava e o que sempre fazia.
Página sim, Kurika quer passear no jardim (mas não se passeia um cão invisível). Página não, o narrador e os filhos observam Kurika numa ida a praia e interrogam-se acerca do espírito do animal.

São cento e algumas páginas com uma narrativa simples, quase poética (ou não quase, poética mesmo), linguagem viva e sentido de realidade, não da nossa de facto, mas da realidade da memória deste cão, que se não o era como os outros era-o então certamente como nós.

concurso de leitura - 2009/10 - 1.ª Fase - dia 17 de Dezembro

CÃO COMO NÓS – MANUEL ALEGRE
(leitura indicada por João Videira Santos)


“Sei muito bem que as pessoas saem dos retratos, sei isso desde pequeno, mas tu não, estás proibido de voltar a fazer o que fizeste esta noite, não posso entrar na sala e ver outra vez a tua moldura vazia.”
Cão como nós, novela do escritor português Manuel Alegre, publicada pela Editora Dom Quixote, é um relato comovente da relação do homem com o cão Kurika. O vínculo construído sem palavras e com forte simbologia. A personalidade do cão forma-se com os liames afectivos, a sua inserção dentro da família e os papéis que assume.O narrador, dono do cão, intercala memórias muito vívidas com o vazio deixado com a ausência do animal. Durante muito tempo, acreditou que o cão era cão e deveria ser convencido disto, mas com a sua morte, compreendeu que o cão era um personagem definitivo no enredo da família. Era o olhar atento, a alegria, a aproximação silenciosa, o corpo entre os pés, as manifestações durante as apresentações musicais, a empatia, a solidariedade, a presença...
Era um cão que acreditava não ser cão e se comportava como filho e irmão. Para o cão, não havia porta fechada ou ordens que não pudessem ser descumpridas, mas existia a fidelidade e o incondicional amor.
As percepções do cão são reveladas na narrativa. Uma confissão amorosa que imortaliza o dia-a-dia do cão, que, não sendo humano, era cão como nós.“Sinto calor aos pés, aposto que estás aí enroscado, vamos de carro a caminho de Moura e um poema começou a esboçar-se dentro de mim, pego num pedaço de papel, é uma conta de cartuchos, não importa, serve, começo a escrever, quando ficamos sós eu leio-te, é para ti.”