Um Festival Literário longe dos salões
O interior não é uma fantasia.
Quem quer chegar de Lisboa a Castelo Branco contando apenas com os transportes públicos tem de apanhar um dos sete comboios e contar com uma viagem de três ou quatro horas, conforme se escolha um comboio Regional ou um Intercidades. Para uma repórter em viagem de trabalho, o percurso está longe de ser aborrecido, porque há tempo para ler os jornais e preparar o programa do dia, mas sobretudo porque a partir de Abrantes há paisagens de beleza esmagadora, a geografia a modificar-se, os campos a cederem ao rio e a visão que antecede a chegada a Vila Velha de Ródão a lembrar as lições de Orlando Ribeiro enquanto deixa dúvidas sobre se o que se vê é mesmoreal. É real e é muito bonito, mas Castelo Branco continua a estar longe dos centros urbanos onde quase tudo acontece, pelo menos o tudo que tem cobertura noticiosa à altura. Também por isso a primeira edição do Festival Literário de Castelo Branco, organizado pela Câmara Municipal em parceria com os Booktailors, teve um ambiente algo diferente de outros festivais. Na receção aos escritores, nas perguntas da plateia, nas visitas às escolas, percebia-se a satisfação de ver um encontro igual aos que costumam juntar escritores e público em grandes salas do litoral chegar ao interior. E se é certo que esta dicotomia não parece ter grande sentido quando voltamos à geografia, com a distância física entre os dois polos a ser tão irrisória que algumas pessoas nas mesas de debate lembraram que Portugal quase parece um país todo feito de litoral, também é certo que as três horas de comboio e os poucos comboios diários não são uma queixa vã para quem ali vive. Uma das vertentes menos visíveis dos Festivais Literários que têm surgido pelo país é a visita dos escritores às escolas. Essa invisibilidade contrasta com as plateias de anfiteatros e auditórios, onde os debates e a presença dos escritores na cidade ganham uma dimensão notória, mas costuma ser ali, entre mochilas e manuais, que os resultados mais importantes de um festival literário começam a germinar. No segundo dia do FLC, acompanhámos a visita de Manuela Costa Ribeiro, Alex Gozblau e João Teixeira à Escola EB 23 João Ruiz. O auditório cheio de alunos do 7º ao 9º ano tinha-se preparado para o acontecimento, com perguntas ensaiadas e muita atenção. Os autores partilharam experiências, sobretudo de leitura, contaram alguns episódios relacionados com o seu trabalho e, mais importante, disponibilizaram-se para a conversa Às perguntas ensaiadas seguiram-se outras, mais naturais, muito curiosas com o processo da escrita e da ilustração de um livro. Quando um aluno perguntou a Alex Gozblau se para ele era mais importante o texto ou a ilustração, o autor respondeu que nenhum dos dois, e devolveu a pergunta:
“Se te perguntassem se preferias ser amputado da cintura para cima ou da cintura para baixo, o que responderias?”. A resposta provocou gargalhadas, dos alunos, e alguma apreensão, até do próprio autor, que respondeu por impulso. Mas antes que algum defensor de alguma teoria pedagógica arrisque a hipótese de um trauma, é preciso dizer que a resposta foi certeira, mesmo que um bocadinho ‘punk rock’, e que o aluno que fez a pergunta, assim como todos os outros, ficaram a perceber que a hierarquização entre texto e imagem num álbum não tem razão de ser. Que daqui avancem em direção à necessidade de aprender a ler, igualmente, as imagens de um álbum, e que passem a dar mais importância à relação entre texto e imagem, só pode ser uma consequência positiva.
No dia seguinte, nova visita de autores, desta vez com Afonso Cruz, Mário Zambujal e Teolinda Gersão na Escola Secundária Nuno Álvares. No cenário, belíssimo, da antiga biblioteca da escola, com as estantes cheias de livros encadernados e muitas raridades bibliográficas, os autores falam do seu trabalho. A receção é atenta: Mário Zambujal conquista a audiência com algumas histórias sobre a sua longa experiências nas redações dos jornais, Teolinda Gersão lembra as suas primeiras leituras, “as mais marcantes de todas”, e Afonso Cruz fala dos livros como “extensões do corpo”, explicando porque lhe parece que sirvam sobretudo para “estender a nossa memória, a nossa cabeça”. No final, não falham as perguntas ensaiadas, como acontece sempre que um autor visita uma escola, mas não deixa de haver muitas outras perguntas, algumas indiciando uma curiosidade grande sobre o ofício da escrita, outras apontando vontades de quem gostava de, um dia, escrever como estes autores.
Um festival literário não se faz apenas com as mesas de debate e a programação oficial. Muito do que acontece não acontece nos auditórios ou nas salas de aula, mas antes à mesa, durante as refeições ou à noitinha, depois dos trabalhos fechados, num bar ou num café. Há quem pense que isto é injusto para o público e quem use o facto como argumento para dizer que os festivais literários são momentos de afagar egos e cumprimentar umbigos, mas haverá coisa mais natural do que várias pessoas que estão num mesmo espaço e que partilham um mesmo momento sentarem-se à mesa e deixarem a conversa correr? Em Castelo Branco não foi diferente e muitas histórias se trocaram entre as refeições e os serões, algumas motivadas pela gastronomia local (o queijo, por exemplo, a desafiar todas as leis e a provar que quanto pior cheirar melhor saberá), outras pela situação atual, à qual ninguém é alheio. Um festival também é isto, um espaço de debate, nem sempre público, mas necessário e pertinente. A tão falada crise da imprensa ombreou com a crise económica como tema de conversa, mesmo que não tenha roubado todo o espaço aos temas literários, aos fait-divers que asseguram a nossa humanidade e às notícias de um tornado ali mesmo, na zona industrial da cidade, cujas consequências só sentimos no forte temporal que deixou três autores e uma jornalista com água pelos tornozelos à porta de uma escola. Longe das mesas de debate e das conversas comensais andei pelas ruas da cidade em busca de quem soubesse do FLC. A procura não desiludiu e ainda deu tempo para visitar o castelo que dá nome à terra, a sé catedral e o mercado. Com a chuva sempre a ameaçar, a tabacaria onde comprei os jornais ostentava um cartaz com a programação do festival e o dono do estabelecimento confirmou o seu entusiasmo com o acontecimento, dizendo que era “uma coisa importante para a terra”. No mercado, respostas distintas: em algumas bancas, ninguém tinha ouvido falar de semelhante festival, noutras tinham uma ideia do que estava a acontecer. Mas a resposta mais informada veio da senhora que me vendeu um queijo capaz de manter à distância todos os passageiros do comboio que me levaria a Lisboa no dia seguinte, e que, discutindo com a filha que jurava não ter ouvido falar de festival, nem de escritores, afirmou alto e bom som: “sim, sim, é aquela coisa que o nosso Manel disse que ia haver por estes dias”. Não sei se alguma das duas arriscou o caminho chuvoso que, nessa noite, levou tanta gente ao Cine-Teatro, mas tendo em conta que o Manel de que falavam era uma criança em idade escolar, suponho que a divulgação do FLC não foi deixada por mãos alheias.
Nas duas noites de Festival que pude acompanhar, a casa estava sempre cheia. A primeira, no Instituto Politécnico de Castelo Branco, reuniu à mesma mesa Adélia Carvalho, Manuel Lopes Marcelo e Júlio Magalhães, moderados por Joaquim Martins, para a discussão sobre o tema da interioridade e os seus reflexos na literatura. Afinal, a mesa acabou a discutir as dicotomias entre os meios rural e urbano, um tema ligeiramente afastado do inicial, mas que motivou alguns lugares-comuns e muitas declarações aguerridas da plateia, onde uma senhora garantia que “lá no litoral as pessoas nem sabem plantar batatas”.
Conceitos confusos, estes que nos definem a sociedade a partir de dicotomias nem sempre muito bem percebidas. Castelo Branco não é o campo e no litoral há muitas zonas rurais onde não faltam batatas nem gente para as apanhar, pelo que o debate da segunda noite do FLC acabou por ser uma oportunidade perdida de discutir aquilo que estava proposto no programa, procurando pistas para perceber até que ponto a interioridade (e não a ruralidade) provoca a distância relativamente àquilo a que chamamos ‘meio literário’ e, mais interessante, de que modo é que esse isolamento territorial implica uma maior demora no acesso aos livros, maiores dificuldades no contacto com as editoras e menos probabilidades de conseguir publicar um livro.
Na terceira noite, o Cine-Teatro Municipal acolheu a última mesa do festival. Afonso Cruz, Isabel Stilwell, Teolinda Gersão e Mário Zambujal conversaram sobre o politicamente correto na literatura portuguesa, moderados por António Paulouro. Entretanto, juntou-se-lhes Pedro Vieira, chegado de Lisboa depois de saber que lhe tinha sido atribuído o prémio PEN Clube Primeira Obra, pelo livro Última Paragem: Massamá, publicado pela Quetzal. O painel não podia ter sido mais à medida do tema e quem esperava intervenções mais ou menos polidas sobre essa coisa a que chamamos, por tudo e por nada, politicamente correto foi surpreendido com sarcasmo, ironia e humor em doses bem medidas e distribuídas equitativamente por todos os intervenientes. Num balanço que haveria de ser reiterado no discurso de encerramento, o Presidente da Câmara Municipal de Castelo Branco, Joaquim Morão, disse à Blimunda que o Município decidiu avançar com o projeto do festival “porque existe público e há uma tradição de encontros literários, que começou com o Raia Sem Fronteiras [um encontro cultural repartido pelas cidades de Castelo Branco, Cáceres e Plasencia]. Temos espaços, temos público, temos pessoas interessadas na literatura portuguesa, portanto faz todo o sentido. Para além disso, um festival como este dá-nos visibilidade.” Algo importante quando os centros onde tudo parece acontecer ficam tão longe, segundo o presidente da Câmara Municipal, que assegurou que o Festival Literário de Castelo Branco é um projeto para continuar. Para o ano, haverá segunda edição.
in "Revista Blimunda n.º 6" pp.72-75
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