Acabo de ler há dias O Visconde Cortado ao Meio com a sensação de enorme conforto que nos fica de belas refeições e dos mais belos momentos físicos das nossas vidas. O ritmo da escrita de Calvino é quase musical, uma sinfonia que passa pelos nossos olhos quase sem esforço, já que, como uma vez disse um grande livreiro português, «ler é uma chatice, mas é a única forma de chegar ao conteúdo dos livros, à vida dos livros». Ora, ler Calvino é a antítese desta sentença.
O visconde Medardo de Terralba (protagonista da obra) havia ficado mutilado na guerra com os Turcos. Cortado em dois por uma malograda bala de canhão, Medardo volta à sua terra natal, Terralba, apenas com uma dos lados do corpo, «decepado» na vertical. Aparentemente, voltara apenas a sua «metade má», passando o visconde a atormentar os seus próprios súbditos, desde enforcamentos em massa a pequenas patifarias com um toque de crueldade infantil – como abrir buracos nas pontes para os camponeses lá caírem.
Pelo meio várias personagens se juntam à narrativa: Pamela, a sua amada; o doutor Trelawney, que, apesar de ter viajado com o capitão Cook, «pouco ou nada tinha visto durante as suas viagens, porque passava o tempo todo no porão, a jogar ao sete-e-meio com os marinheiros»; o artesão Pedro Prego, que construía, para seu desprazer, máquinas de execução e tortura para o visconde, embora a estética das construções o maravilhasse; e o narrador, uma criança que é sobrinho do próprio visconde.Aliás, a «inocência» da escrita é de certa forma parente do facto de o narrador ser, habitualmente, uma criança: seja sobrinho do protagonista nesta obra ou, por exemplo, o irmão do barão protagonista de O Barão Trepador.
Para finalizar, resta dizer que a chave do livro está no surgimento de uma nova personalidade misteriosa do visconde de Terralba que, aparentemente, faz o bem de forma tão veemente como faz o mal. Esta duplicidade divide os habitantes a partir do momento em que o «benfeitor», ao denunciar os pequenos crimes inocentes, se torna tão insuportável quanto o terrível tirano que é o visconde mutilado regressado da guerra. Ou seja, e como diz o narrador, os habitantes sentiam-se «perdidos entre a malvadez e a virtude igualmente desumanas». É precisamente nesta duplicidade, nesta ambivalência, que reside a chave do livro, que reside a essência das duas naturezas do visconde. Das duas naturezas, enfim, do próprio homem. Poucos escritores transformariam esta questão num livro tão memorável. Italo Calvino é um deles. O desfecho deixa ao leitor essa oportunidade de descoberta.
"O Visconde cortado ao meio", de Italo Calvino, é o primeiro livro da trilogia "Os Nossos Antepassados". É um livro de linguagem e estrutura feérica, onde as formas mais presentes nos tradicionais contos de fadas conseguem ser desenvolvidas nos seus aspectos mais terríveis, a caminho do sadismo, num contexto referencial adulto, norteado por um sentido de humor que balança entre o infantil e o mais filosoficamente profundo cinismo. Hiperbólico e metafórico, é um romance poético sem se deixar ofuscar pela sua linguagem poética. A invenção do absurdo nunca se sobrepõe à narrativa que avança sempre com o mais nobre (e hoje, cada vez mais difícil) intuito de qualquer obra de ficção, que é contar uma história. Há, com certeza, um fundo moral e político que, independentemente de qualquer pretensa opção puramente hedonista do autor, conforma uma alegoria sobre a natureza humana e a sua necessária complexidade. Ao contrário de alguns autores, não considero que Calvino ataque a bondade pura; apenas expõe ao ridículo a sua estéril e impotente obra e o desejo de recorrente reformismo, em contraste, por exemplo, com a atitude pedagogicamente correcta da ama Sebastiana que admoesta a parte boa do visconde sem querer saber de qualquer desculpa baseada na origem maligna dos comportamentos apenas imputáveis à parte má, porque ambos permanecem, ao seu olhar maternal, como um só.